Maria Beatriz Dal Pont*
Tão surpreendente quanto os cumes e paredes rochosas das magníficas montanhas que se erguem a mais de 2000 metros de altura, em Belluno, na região do Vêneto, na Itália, é a comida do complexo de montanhas chamado Dolomitas. Suas receitas são antigas e refletem o isolamento dos locais, o estilo de vida e as tradições antigas dos povos de montanha, muito ligadas aos conflitos territoriais que trouxeram influências austríacas e italianas, compreendem a diversidade cultural de três regiões distintas: Vêneto, Friuli Venezia Julia e Trentino Alto Adige.
Destacam-se, nesta cozinha, os embutidos e os defumados, que graças ao seu método de preparo conservam os alimentos por muito tempo e servem como ingrediente para outros pratos de massas, ensopados com carne, polenta, strudel de carne, o pastin com repolho...
A cozinha de montanha reflete o trabalho laborioso e difícil de seus habitantes, os invernos rigorosos, o fogão à lenha, as preparações de longo cozimento. São receitas de sopas e caldos substanciosos e aromáticos, das carnes assadas e recheadas, das caças, dos queijos de cabra e de ovelha, das batatas e dos feijões. A cozinha dolomita é, também, uma cozinha de floresta, que inclui ingredientes colhidos diretamente na natureza, como os cogumelos, as bagas e frutas silvestres, as ervas, as castanhas e as nozes.
São muito apreciados os licores caseiros à base de ervas, nozes e castanhas; as conservas de frutas, os doces como o strudel de maçã, as tortas recheadas de frutas, as massas folhadas com creme de baunilha, as preparações à base de ricota. O blueberry ou mirtilo é bastante utilizado, tanto como acompanhamento de pratos salgados, nos doces e para aromatizar a Grappa. O suco de mirtilo frescos é presença contínua no café da manhã, nos lanches e nas sobremesas.
As ervas e especiarias são um capítulo à parte nesta cozinha perfumada e saborosa, onde se destacam o zimbro, a canela, a urtiga, o cravo, o cominho, a páprica, a semente de papoula, sempre presentes nos pratos salgados e também nos doces. Não se pode esquecer que a região do Vêneto abriga a cidade de Veneza que foi, durante séculos, a ponte entre o oriente e o ocidente, que dominou a importação e o comércio das especiarias no mundo. Nada mais natural que a região tivesse uma gastronomia que utiliza com maestria as especiarias para ajudar a conservar e a aromatizar seus pratos.
As batatas acompanham os muitos pratos desta cozinha de personalidade, em suas diversas versões: deliciosamente fritas e crocantes, assadas e douradas, em purê, em rôsti, em salada, em polenta, misturada com farinha de milho branca, em forma de panquecas – chamadas de frico - misturadas com queijo, panceta e azeite extravirgem.
Massas
As massas são representadas pelos gnochi à base de ricota, de queijos diversos, de batatas misturadas com funghi, abóbora. Também o strangolapreti, feitos com espinafre e ricota, a papardelle e tagiatelle com molho de carne de caça, e os raviólis recheados de batata de queijo. Nas sopas, o Canederli – bolinhas feitas com pão dormido, farinha, ovos e manteiga – cozidos no caldo de carne, talvez seja o mais representativo da cucina povera, feita com reaproveitamento de pão, onde o desperdício não tinha lugar e nem era consentido.
A cozinha de Cortina D´Ampezzo contribui, ainda, com uma massa recheada de purê beterrabas e ricota e servida com molho de manteiga e sementes de papoula: o cazunsei all ´ ampezzana, uma delicadeza de sabor em meio a pratos fortes e substanciosos. O goulash – ensopado de carne e especiarias – faz parte da cozinha dos dolomitas, sempre acompanhado de polenta branca ou amarela.
O clássico o pastin, tanto na sua versão crua como cozida, é acompanhado por batatas fritas, sequinhas e crocantes. Este prato é muito popular, sendo servido nas festas de santos padroeiros e das pequenas localidades ao redor de Belluno. Sua preparação é simples, mas o resultado é excelente: carne de gado, carne suína moída e misturada com panceta, sementes de erva doce, sal, pimenta e vinho. Molda-se em formato redondo e cozinha-se sobre a grelha. Outra forma de servir o pastin é sem grelhar, cru, sobre uma fatia de pão torrado.
Para aperitivo ou entrada, serve-se o Brettljause, mais conhecida em nossa região como tábua de frios, que na versão dolomita apresenta embutidos como linguiças defumadas, speck, filé defumado, presunto cozido, presunto de cervo, diversos queijos regionais, peras, cachos de uvas, acompanhado de pães rústicos com sementes de papoula, nozes e castanhas, e o tradicional cren, feito à base de raiz forte conservada no vinagre.
Os doces
Nos doces, a influência austríaca é percebida com muita facilidade nas tortas tradicionais como a Sacher, a Apfelstrudel, a Torta de ricota, a Floresta Negra, a Linzertorte. Os grostoli, tão identificados com a cozinha da Serra Gaúcha, têm sua versão oriunda de Cortina D´Ampezzo – os carafoi – que são preparados para as festas religiosas familiares como casamentos, batizados, batismos, primeira comunhão e crismas.
O hábito de preparar licores em casa é ainda cultivado nesta região de montanhas, onde o frio intenso enseja o consumo de bebidas alcoólicas, seja à base de flores, ervas ou frutos. Um bom exemplo são as grappas aromatizadas com marmelos, peras, mirtilos, frutas do bosque, castanhas, nozes. Os licores encorpados, como o de ovos, de nozes, de flor de sambuco são servidos em todas as estações, acompanhados de biscoitinhos ou após as refeições.
Para quem já visitou as montanhas vênetas, que este percurso gastronômico da cozinha dos dolomitas sirva de recordação dos aromas e sabores. Para quem ainda não conhece, que sirva de motivação para visitar e presenciar as maravilhas da natureza e da mesa de montanha. De uma maneira ou de outra, boa viagem!
*Professora e estudiosa em gastronomia
Comments